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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

VENTILADOR um poema de JOSÉ JORGE LETRIA

 Ventila o ar e ventila a dor

No meio do labirinto cinzento dos dias que se acotovelam na disciplina militar

Nos calendários em que hoje ninguém procura

Datas que valha a pena, ainda, celebrar.

Não deixamos de ser quem eramos

mas deixamos de fazer da pressa o fermento que alimenta os músculos

para a corrida que nos torna heróis do muito, que já não somos.

Deixamos de valer pelas roupas, pelas casas, pelo rigor opressivo dos relógios

pelo triunfo a cada hora celebrado do lucro aumentado

nas folhas limpas do nosso tédio,

da alegria inebriante de se ser primeiro em quase tudo

 

Vieram os animais perguntar quem somos

o que queremos, e tambem o que valemos

Vieram os pardais, os esquilos, as raposas, as lentas tartarugas e os mamíferos opulentos

para tentar saber quem deixou o Mundo neste estado

Viram as portas fechadas, as janelas cobertas

com panos espessos de afugentar o sol

de afugentar sorrisos e abraços

 

Viram retratos do que eramos antes da febre

entrar no nosso corpo para dizer que já é tempo

de desistirmos do imenso engano que criamos

ilisionistas deste assombro transformado em derrota

 

Não viram exércitos, mísseis, drones assassinos

mas viram, muito mais do que é costume

gente a chorar nas bermas das praias vazias

por uma sopa quente, por um prato de carne ou peixe

por todos os manjares que sendo altivos e excessivos

de súbito se tornaram irmãos gémeos de uma imensa fome

E todos tinham máscaras

como se fosse esse o traje aprovado

para o apocalipse das mesas limpas e vazias

 

Alguns pronunciavam com respiração grave e pesada, a palavra vacina

como se fosse ela agora o nome de deus

na boca entreaberta das cidades tombadas em combate

 

Vieram os animais pedir-nos a dádiva da esperança

mas ninguém se ergueu para responder

porque havia muita gente de bata branca a salvar uma última vida

antes da prece salvadora

E houve até descrentes que se ajoelharam

abraçados a árvores antigas e a pilhas de livros

e disseram oss nome dos filhos e dos netos

como se fosse essa a fórmula mágica dos corações que não desistem deste mundo

Alguém, ligou então o ventilador

o que ventila o ar, o sonho e a dor

E pediu-lhe para nunca desistir de acender

a última luz do dia no sobressalto das lágrimas

sob pena de deixar morrer em nós, sem remédio

a chama vacilante e breve

que nos prende ao último vôo que nos faz ser livres desta vida!

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