Ventila o ar e ventila a dor
No meio do labirinto cinzento dos dias que
se acotovelam na disciplina militar
Nos calendários em que hoje ninguém
procura
Datas que valha a pena, ainda, celebrar.
Não deixamos de ser quem eramos
mas deixamos de fazer da pressa o
fermento que alimenta os músculos
para a corrida que nos torna heróis do
muito, que já não somos.
Deixamos de valer pelas roupas, pelas
casas, pelo rigor opressivo dos relógios
pelo triunfo a cada hora celebrado do
lucro aumentado
nas folhas limpas do nosso tédio,
da alegria inebriante de se ser primeiro
em quase tudo
Vieram os animais perguntar quem somos
o que queremos, e tambem o que valemos
Vieram os pardais, os esquilos, as
raposas, as lentas tartarugas e os mamíferos opulentos
para tentar saber quem deixou o Mundo
neste estado
Viram as portas fechadas, as janelas
cobertas
com panos espessos de afugentar o sol
de afugentar sorrisos e abraços
Viram retratos do que eramos antes da
febre
entrar no nosso corpo para dizer que já
é tempo
de desistirmos do imenso engano que
criamos
ilisionistas deste assombro transformado
em derrota
Não viram exércitos, mísseis, drones
assassinos
mas viram, muito mais do que é costume
gente a chorar nas bermas das praias
vazias
por uma sopa quente, por um prato de
carne ou peixe
por todos os manjares que sendo altivos
e excessivos
de súbito se tornaram irmãos gémeos de
uma imensa fome
E todos tinham máscaras
como se fosse esse o traje aprovado
para o apocalipse das mesas limpas e
vazias
Alguns pronunciavam com respiração grave
e pesada, a palavra vacina
como se fosse ela agora o nome de deus
na boca entreaberta das cidades tombadas
em combate
Vieram os animais pedir-nos a dádiva da
esperança
mas ninguém se ergueu para responder
porque havia muita gente de bata branca
a salvar uma última vida
antes da prece salvadora
E houve até descrentes que se ajoelharam
abraçados a árvores antigas e a pilhas
de livros
e disseram oss nome dos filhos e dos
netos
como se fosse essa a fórmula mágica dos
corações que não desistem deste mundo
Alguém, ligou então o ventilador
o que ventila o ar, o sonho e a dor
E pediu-lhe para nunca desistir de
acender
a última luz do dia no sobressalto das
lágrimas
sob pena de deixar morrer em nós, sem
remédio
a chama vacilante e breve
que nos prende ao último vôo que nos faz ser livres desta vida!
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